Crônica do Matuto

Angélo, sujeito pacato, matuto, bom coração.

Primeira vez na praia. Nunca tinha visto o mar. Nem sequer tinha andado de elevador.

Vai com a família para umas férias notáveis em uma praia, no décimo andar.

Carro usado, mas novinho, bem conservado, cuidado com carinho. Primeira aquisição em muitas e muitas prestações. Quase uma vida inteira para pagar. Nem sequer um seguro, pois ou pagava a prestação do carro, ou a prestação do seguro.

Chegam de noitinha no prédio onde vai passar uns dias, e com o carro que heroicamente dirigiu e trouxe a família toda. Apertadinhos, mas todos vivos e com suas respectivas malas. O carro meio que arriou, mas resistiu bravamente a todas as curvas da estrada da costa.

E, finalmente a chegada na cidade litorânea.

O cheiro de mar já anima os viajantes. As ondas e o barulho delas na areia, é como uma melodia no ouvido dos animados turistas.

Os prédios à beira mar, os calçadões, a areia em todo lugar, o destino final, afinal. O prédio com apartamento alugado no décimo andar.

O primeiro pavor… o elevador que sobe teimoso até o décimo andar com todos os gemidos que se pode ouvir.

Escrito na plaquinha, dentro do elevador, além de todos os outros botões, chama a atenção de Angélo: “Suporta até duzentos quilos”. Ele sobe manhoso, torcendo para ter feito a conta certa… a vó tem uns cem quilos, ele tem uns oitenta… então pode subir ele a avó e mais uma mala, nada mais. O resto da família vai depois.

O zelador informa que não tem garagem para o carro. “Zeca”, como foi carinhosamente batizado, fica na rua.

N o apartamento do décimo andar ele olha para baixo, e vê o carro. Gente esquisita passando. O que acontece se levarem o carro? Vai pagar por nada, o resto da vida.

O negócio é vigiar.

Descer para ficar no carro? Não, sem chance. Também não confia no elevador.

Chega na sacada. Dá de cara com uma rede protegendo a varanda. Uma rede de gatos.

Ele sobe no degrauzinho da balaustrada, agarra-se na rede e fica a vigiar o carro. Se algum ladrão descarado ousar, ele grita de lá mesmo.

O dia vai fugindo e a noite vem. O lusco fusco toma conta do lugar, as luzes da cidade se acendem, os navios no porto fazem seus respectivos sons – “fôôôn”- e sinais de luz.

Até certo ponto tudo é novidade, tudo é encanto, mas o tempo passa e a cidade começa a ir dormir. Todos se aprontam para descansar e ir logo cedo para a praia.

Ele não abre mão de se agarrar na rede e continuar a vigiar seu precioso “Zequinha”, comprado com tanto sacrifício e ainda não quitado.

E a noite chega, negra com certeza. A lua faz graça com sua luz na água e deixa seu rastro reluzente como um caminho para o horizonte enegrecido, até os perfis das montanhas.

Ele ainda agarrado à rede, começa a chamar atenção dos transeuntes. Ele começa a cochilar, pendendo cada vez mais no espaço forçado pela elasticidade da rede.

Quem olha de baixo, não vê a rede, mas um matuto inclinado para fora da varanda no décimo andar. A turma lá embaixo começa a se apavorar e o matuto cá para cima começa a cochilar.

Abre os olhos de vez em quando, mas vendo seu vermelhinho ainda estacionado, não dá atenção a mais nada. Aliás, começa achar que deve ter alguma festa lá embaixo, o que exige mais atenção ainda.

Mas o sono é mais forte e ele pende cada vez mais para o vazio, segurado pela rede.

Dali a pouco ele ouve a sirene da polícia.

Assusta-se, mas abrindo um pouco os olhos ainda vê seu vermelhinho lá embaixo e volta a cochilar.

Em pouco tempo a turba lá embaixo aumenta, todos cogitando quando é que ele vai pular, por que será que ele quer pular? Um mal de amor, um sofrimento atroz, uma dívida impossível de ser paga, um sonho destruído? As especulações são muitas.

A campainha do apartamento toca forte, insistentemente e com fúria revigorada.

A avó, levanta-se assustada, corre para a porta e abre. É quase jogada ao chão, tal é a correria dos policiais, ansiosos por salvar uma vida.

Eles invadem o apartamento e correm para a sacada. Ele ainda está dormindo pendurado na rede.

Quando percebem que ele está dormindo, o agarram e o trazem para dentro. Ele abre os olhos arrancado do seu torpor, abre a boca sem compreender o que se passa.

— Por que estava tentando pular?

Ele não entende nada. Olha para os policiais, aterrorizado.

— Roubaram meu vermelhinho? Oh não! Vou viver pagando uma dívida para nada! Tentando pular? Pular aonde, de onde? Quem tentava pular?

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