A Aranha

Muito tarde, ou muito cedo – madrugada. É a hora que costumo decidir pela culpa ou não de comer algo mais antes de dormir ou se durmo sem comer. Raramente é uma decisão fácil. Normalmente vence a gula.

A cozinha, enorme com seus pisos brancos no chão e os correspondentes na parede, dois freezers, duas geladeiras.

Dois fornos elétricos, um micro-ondas, um air fryer, um tostex, uma máquina de fazer pão. No contorno interno do balcão de mármore, um ventilador, duas fruteiras, algumas frutas e… uma enorme aranha.

Acendendo a luz, a criatura fica imóvel.

Tudo bem, eu não sabia se antes de acender a luz ela estava andando ou não. Estou com a mesma dúvida do cientista sobre o gato de Schrödinger.

Mas, ela estava petrificada, parece que tenta se mesclar com o piso branco, mas impossível, ela é negra, com horríveis pernas finas compridas, peludas, esparramadas ao redor dela. O que ela vai tentar?

É impressão ou acho sempre que assim como temos pensamentos de defesa, prevenção e supostamente aprendizados mil, ela ou qualquer outro animal também os tem. Nossa, que impressão brilhante… me sinto reinventando a roda…

Certamente ela veio do jardim, que foi recentemente podado e ela, provavelmente ficou sem casa.

Aranha constrói casa? Acho que não, acho que estou elucubrando muito.

Bem, a bem da verdade eu também fico petrificada do lado de cá. Já me encontrei com aranhas antes, mas parece que a madrugada as transforma em bruxas más das loucas aventuras de Marvel ou as inusitadas histórias de Tim Burton.

Essa aranha então é bem esquisita. Ela pula, em plena vertical. Forma um perfeito ângulo de noventa graus com o solo, no pulo. Não muito alto, mas cai no mesmo lugar de onde saiu. Nem um centímetro para esquerda, nem para direita. Vai reto para cima e volta.

Tento entender a finalidade do pulo. Não entendo. Acho que nem ela, a aranha.

Vai ver tentou me intimidar, mas ingenuidade dela. Além de muito maior que ela estou a uns dois metros de distância. Tanto que tiro o chinelo e jogo sobre ela. Erro fragorosamente. Além do quê, ele cai de lado no chão. Bem, agora com somente mais um chinelo, preciso decidir minha próxima ação.

Ataco a pobrezinha que ainda está petrificada no chão, ou já morreu e eu é que não percebi, ou volto, pego o inseticida e arrisco voltar e ela já ter se mandado, sei lá para onde?

Muitas questões existenciais, imprescindíveis na vida humana, para aquele momento crucial de decisão. Decisão que, como “Twilight zone”, vai mudar o mundo.

Acho que já é tarde, ou cedo, e eu já comecei a viajar na maionese…

Agora só vou na cozinha de madrugada, armada. Um aerossol inseticida sempre na mão.

Acerto a pobre com o segundo chinelo. Ela já está bem reduzida em seu tamanho. Eu gostaria de não fazê-lo, mas ela invadiu meu espaço, embora eu não tivesse colocado nenhum aviso nos vãos para “Proibida entrada de aranhas feias”. Sim, feias, pois as pequenas e bonitinhas, deixo para as lagartixas tomarem a decisão.

É realmente um “mundo cão”. O que mantém o equilíbrio no mundo das espécies… ou não!! O um come o outro, o outro come o um…

Finalmente chego na despensa.

Descubro na despensa que tem alguém comendo comigo minha pipoca. E não é a aranha. Estão faltando saquinhos.

Glossário

Aranha – o sujeito da minha história no momento… viva ou morta.

Madrugada – aquele horário de decisão, de comer ou não, ter pesadelos ou dormir com os anjos. No meu caso. Você pode ter outras definições, claro!

Gula – um dos sete pecados capitais segundo a filosofia cristã.

Air fryer – aquela coisa que torna nossa vida mais preguiçosa, mais gostosa, menos trabalhosa e faz coisas gostosas.

Fruteiras = onde colocamos frutas, lógico, mas também alguns adereços não explicativos de sua natureza e de sua pertença.

Petrificada – forma rebuscada de dizer que alguém ficou paralisado. Isto é… virou pedra. Pesquisando a etimologia da palavra… sei lá, foi só um palpite.

Mesclar – síndrome de camaleão. Se esconder, misturar, disfarçar-se. Mudar a forma e cor para se proteger de algo ou para não ser pego em falta.

Elucubrando – pensamentos sem eira nem beira. Só para os criativos.

Marvel – comics. A editora de histórias em quadrinhos.

Tim Burton – um cineasta muito legal, que errou feio com a Wandinha… muito chata ela e todo o staf que compõe a trama. Devia ter ficado com “A noiva cadáver”, “Frankenweenie”, etc e tal.

Ângulo de noventa graus – o senso comum = Dada uma reta r e um ponto P em r, construir a semi-reta que passa por P formando um ângulo de 90 graus com a reta r. Considerando: eixo x, ou eixo das abscissas, horizontal e a reta vertical é chamada de eixo y, ou eixo das ordenadas, a distinta aranha pulou na direção do eixo Y.

Ingenuidade = aquela desculpa que se dá no momento em que não se quer assumir a responsabilidade de ter feito uma porcaria, ou ter errado fragorosamente um alvo.

Fragorosamente – erro no ataque à aranha por quilômetros… e o pior ainda é que mesmo assim, ela não se mexe.

Imprescindíveis – uma forma tonta de tentar parecer inteligente, quando poderia se falar “necessárias”.

Momento crucial – aquele “turning point” quando a decisão é de vida ou morte.

Lagartixas = amiguinhas da sorte que mantém o equilíbrio do ambiente, comendo aranhas para nosso bem-estar… elas comem outras coisinhas também.

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