A arara vermelha
Todas as vezes que passava ali, aquela linda ave chamava atenção. Uma arara coloridíssima, abria o bico e grasnava algo.
Sei lá, se grasnava. Fazia um barulho estranho e se emplumava toda.
Não sei o que se passava com ela. Era eu que passava por ela e ela gritava algo.
Não estava presa, não estava em gaiola, mas não voava de lá.
Era linda! Encantava toda gente. Não víamos algo assim na cidade. Talvez numa mata, ou na floresta, mas na cidade não. Só ali havia uma arara.
Havia também moradores misteriosos na casa. Um carro vermelho, com longa cauda, denotava pessoas de bom poder aquisitivo.
Era o mote da época.
Nunca via ninguém, só via a arara. Parava um pouco e feito boba, ficava repetindo:
– Arara, arara… e a distinta também falava:
– Arara, arara. – bicho esquisito.
Mureta baixa, portãozinho frágil, parece que não havia, naquela época, medo de ladrão.
Ninguém entrava onde não era convidado, ninguém pegava o que não era seu… parece que era assim, e aquela casa testemunhava isso.
Incrível né? Vivi nessa época… ou nessa fantasia, “sabemo lá!”
Um dia, passando lá, eu menina, xereta, teimosa, segundo meus pais, resolvi mudar um pouco as coisas.
Parei em frente ao portãozinho, olhei para dentro da casa e ela continuava misteriosa, como sempre. Quieta, parecendo desabitada, silenciosa. Ao lado da mureta do portão, uma campainha.
Meus dedinhos ficaram tentados a apertar. Será que a arara iria reagir à campainha?
Só experimentando para saber. A única coisa que eu não reparei era que o carro de cauda vermelha, não estava lá.
Apertei a campainha. Fiquei observando a arara e ela não se mexeu.
De repente, pareando ao meu lado, vejo a ponta vermelha do carro, embicando para a garagem. Gelei.
Olhei para dentro do carro. Um moço muito lindo olhando para mim e eu com muita vergonha. Recolhi rapidamente o dedo, enfiei no bolso do shorts, olhei para frente como um militar que atende uma ordem superior.
Saí correndo como um foguete e nunca fui tão rápida antes, na minha vida.
Toda compostura aprendida na vida, perdeu-se no caminho até em casa. Aos trancos, entrei pelo portão adentro.
Cheguei em casa bufando e, nunca mais passei por aquela rua.
A todos que perguntavam o porquê, eu desconversava.
Até hoje me lembro do carro vermelho… e do moço lindo que ficou olhando para mim, sem entender o que estava acontecendo.
Pelo menos é o que eu quis acreditar naquele momento.
Glossário
Todas as vezes que passava ali – Por volta de 1966, 1967??
Arara- uma ave linda, que atualmente só vejo no Animal Planet
Grasnava – achei que era o som que a arara fazia. Não sei ao certo.
Mote – Mote é o verso ou conjunto de versos que é utilizado como desafio poético, para criação de uma composição poética como a glosa ou o vilancico. Segundo a Wikipédia. Segundo eu, era o que se falava a respeito de determinados assuntos e praticamente se tornava uma verdade.
Moradores misteriosos – gente nunca vista, somente imaginada, ou com fama de excentricidade. Era o que eles pareciam.
Carro vermelho – naquela época, nos idos anos 60, era o que chamávamos de “rabo de peixe”… era chique demais.
Bom poder aquisitivo: Assim como hoje, definimos como aqueles que compram o que não podemos comprar.
Xereta, teimosa– era a fama que eu tinha. Nunca me comportava segundo o esperado… até hoje sou assim.
Mureta – muro pequeno, baixinho, comum nos anos 60. Hoje nem tanto.
Campainha – costumava ser um alarme para avisar que tinha alguém na rua querendo falar com alguém de casa.
Gelei – o que senti, quando fui pega fazendo algo que achava que não devia.
Vergonha – o que sinto também quando sou pega fazendo algo que não devia. Se bem que hoje em dia, disfarço melhor.
Shorts – o que a gente usava como vestimenta quando criança.
Correndo como um foguete – pernas para que te quero. Era a forma de achar que poderia passar sem aquela vergonha.
Compostura – a forma como a gente achava que deveria se comportar em determinados contextos.
Bufando– resultado de uma correria desabalada, fugindo da vergonha de ter sido pega.
Desconversava – fazia de conta que não tinha entendido o perguntado e mudava de assunto.