A rabiola dourada

Mesmo sob sol e sob chuva ela preferiu estar lá do que aventurar-se junto com o resto do corpo da pipa. Uma ventania forte a rasgou, a separou do corpo principal da pipa e ela foi agarrar-se na árvore que, naquele momento estava ao seu alcance.

Como podia, ela aventurar-se a seguir com a outra parte? Era temerário, era perigoso!

Brilharia ainda por um tempo para quem passasse ao largo, mostrando ainda alguns estalidos de luz, quando o sol aparecesse.

Nas noites, brilharia com os raios das estrelas, ou com os raios do trovão se houvesse chuva, mas estaria agarrada e segura enroscada na árvore.

Tinha voado muito com a cabeça da pipa, apreciado muito as paisagens e visto muita coisa, mas temeu estar abusando da sorte. Quem sabe o que poderia acontecer?

E, numa noite de tempestade, escura, sem luar, com medo das sombras que as nuvens formavam, do vento que as arrastava, enroscou-se na árvore, permitindo que se cortasse seu elo, sua ligação com a parte da cabeça da pipa. Ela seria um rabo sem pipa e a pipa seria uma pipa sem rabiola.

Como foi parar lá, no topo da árvore? Foi assim que ela foi parar lá. Por decisão própria, por medo e tentativa de se sentir segura.

Até parecia ter vida própria, consideradas todas essas decisões. Era brilhante, mais esperta que algum ser humano que se arriscava, que se expunha ao perigo aventurando-se por caminhos não percorridos ainda.

Mas estamos falando de que? Rabiola raciocina, pensa, decide voar ou não, acompanhar ou não o resto do corpo do papagaio?

Estamos construindo um nonsense e aqui tudo é permitido. Aqui, tudo tem vontade própria, pensa fica inteligente ou emburrece conforme a conveniência do momento.

Bem, onde está o resto da pipa?

Linha grossa, varetas, cola, papel de seda, o desenho, a rabiola. Era a sequência necessária pra construir um papagaio ou pipa, como é chamado aqui também.

Entender o vento, sair correndo e soltar na hora certa para que ela não dê piruetas antes de subir. Torcer para ela não enroscar nas árvores ou nos fios elétricos ou cair de ponta no asfalto rude, arregaçando toda a sua vareta principal.

E o vento? Ah! Tem que ser aquele vento… o do contra.

Dizem que você fica torradinho se a pipa encostar num fio desencapado enquanto você está empinando. Bzzzuuu! Nunca vi, mas dizem.

-Dá linha, dá linha! – a meninada grita na rua, querendo incentivar o empinador, ou querendo desviá-lo da atenção de controlar o papagaio.

Quem é ansioso nessa hora, não se concentrou o suficiente, não internalizou a própria aprendizagem, a arte de empinar papagaio, está perdido… seguir conselho de outros que não estão com a linha na mão muitas vezes é fatal… não sentir e não entender o que os coices da pipa significam para você e para ela, para o papagaio, em geral… é desmoralizante para o empinador. A falha na comunicação, pipa X empinador é fatal.

Solta a linha, sai correndo, pega um vácuo. O papagaio perde a força, cai, enrosca na árvore, a rabiola jaz inerte, só brilhando por suas tirinhas serem douradas.

Mas, cálculos precisos, experiência, vivência, esperteza mantêm a criança no ar por mais tempo.

Empinar papagaio, com uma linda rabiola dourada exige mais cálculos, mais cuidados, mais expertise, ou seja… impossível de acontecer. Nunca tive paciência para buscar medidas. Olhava o que outros faziam e copiava… funcionava!!

Na verdade é muito simples. Deixe sua alma dirigir, deixe seu coração exultar ao encontrar o vento ideal, deixe seus olhos se encherem de alegria quando ele sobe e você “dá linha” para seu lindo brinquedo enfeitar, mesmo que por poucos momentos, a vida de muitos.

Dá linha! Deixa ela ficar tão pequenina aos seus olhos, para que seu orgulho cresça na ordem inversa do tamanho visto da pipa.

E quando você descobre, com a pipa no ar, tudo dando certo, que você pode dançar junto com ela, o encantamento é maior ainda. A “viagem” na magia do momento acontece.

Encha-se de inveja do papagaio com a linda rabiola, porque não pode ser você voando lá no alto, mas pode ser você permitindo que ele voe e que ele faça piruetas e rodopios. Imagine então, se o papagaio tivesse olhos, se você pudesse ver o que ele vê, o que você estaria vendo?

Ops! Embaçou! Trombou com uma nuvenzinha matreira. Tudo branco, borrado. Fog? Névoa? Nuvenzinha chata, soltando a pipa e ela prossegue.

Já teve sua pipa atacada por um pássaro?

Sim, um indivíduo, tratado como “quero, quero” é agressivo assim. Quando há filhotinhos no chão, qualquer coisa que não seja ele, chegando perto das crianças recém-concebidas, saídas do ovo, é atacado.

A pipa, ingênua, na mão do empinador, tentando sobreviver nos ventos baixos, com piruetas insanas, voando baixo, tendo acertado a ponta da cabeça já várias vezes no chão, tendo vencido esse obstáculo e tentando subir novamente, chegando perto de um filhote, é atacada por um “quero, quero”, e, pode ter certeza, você terá que fazer outra porque daquela não restará mais nada a não ser partes estraçalhadas, estripadas pelos bicos do amigo “quero, quero”.

Pássaros ensaiando pinotes em torno daquele objeto colorido, mas incógnito. É perigoso ou é amigo?

Já pensou transformar-se em um papagaio, desses lindos, com formas super bem feitas, voando no céu, enchendo de prazer quem aprecia e vislumbra a possibilidade de voar junto?

Estava tão feliz voando no céu, apreciando a paisagem e tentando esticar o repertório de papagaio com rabiola dourada, quando um “vento siroco” no pensamento acabou com toda a graça do passeio.

…foi jogado contra uma árvore, o corpo separou-se da rabiola, indo para longe, para o infinito, não mais encontrado, a rabiola, agarrou-se nos galhos da árvore de medo de não saber para onde ir. E não saberia mesmo, mas não ousou se arriscar a descobrir.

Está agarrada na árvore e a árvore também se agarrou nela.

A rabiola ainda não sabe se fez bem ou não.

Até agora, o corpo do papagaio ainda não foi encontrado e ele pode muito bem, estar tão longe e num lugar tão lindo, e… a rabiola, de medo ainda estar presa nos galhos da árvore.

Sabe-se lá!

Quem olha de baixo e é expert no assunto, já sabe que se a pipa se puser em determinados ângulos é porque está tentando o suicídio. Aí não há muito o que fazer. Se você for esperto recolhe rapidamente a pipa, enrolando freneticamente a linha, ou desiste dela, deixando-a por sua conta e risco, o que fatalmente vira uma rabiola solitária no topo de uma árvore, brilhando num dia de sol.

Glossário

Pipa ou papagaio – atualmente brinquedo divertido, encantado, que preenche a vida das pessoas. Antigamente, na China, arma de guerra que sinalizava mensagens e sinais de vários tipos para as tropas em campo. Essa segunda definição aprendi no Google.

Vento siroco do pensamento – aquele vento destruidor de paixões mesmo as sonhadas e ilusórias. As fantasias que dão vida à criatividade, aquele que põe mordaça nos mais belos pensamentos. (Isso tudo é invenção minha, você não vai encontrar essa definição em nenhum dicionário)

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