Destino em Paris

O avião chacoalhava suavemente, cortando as nuvens que brilhavam sob o sol da manhã.

Dentro da cabine, o som abafado dos motores misturava-se ao murmúrio baixo dos passageiros. Helena olhava para o tablet, revisando um contrato pela enésima vez. Nada escapava à sua atenção — prazos, cláusulas, vírgulas. Para ela, o trabalho era uma armadura. O amor, por outro lado, era distração. E distração custava caro.

Do outro lado do corredor, um homem de olhar sereno observava a janela, o rosto parcialmente iluminado pela claridade. Chamava-se Daniel. Traços fortes, barba bem feita, e uma postura que misturava tranquilidade e elegância natural.

Poucos sabiam quem ele realmente era — dono de uma das maiores redes de restaurantes do mundo, mas ali, era só um homem com um passaporte e um desejo sincero de anonimato.

Ele queria respirar sem ser reconhecido, viver momentos sem roteiros.

O destino, caprichoso como sempre, decidiu colocá-los lado a lado quando uma senhora pediu a ele para trocar de lugar.

— Com licença — disse Daniel, num tom grave e gentil.

— Claro. — Helena recolheu o casaco do assento, sem erguer muito o olhar.

Quando ele se sentou, o perfume discreto — envolvente — pareceu preencher o espaço.

Helena tentou ignorar, mas não conseguiu. Sentiu o corpo reagir de um jeito que não gostava de admitir.

Daniel, por sua vez, notou o olhar dela de relance e sorriu. Um sorriso calmo, seguro, quase perigoso.

— Vi que você trabalha até no voo — comentou ele, tentando quebrar o gelo.

— Sim! — respondeu ela, tentando não permitir-se denunciar, seca, sem olhar.

— E o descanso, espera quanto tempo? — perguntou ele, num tom leve.

Ela o encarou, por um instante. A ousadia dele a surpreendeu — não pela pergunta, mas pela naturalidade com que parecia interessado nela.

— Descanso é luxo. — respondeu. — E eu prefiro merecer os meus luxos.

Daniel riu, encostando-se no encosto da poltrona.

— Então estamos empatados. Eu também aprendi a merecer tudo que conquistei.

Por alguns minutos, o silêncio reinou, até que a turbulência os fez se aproximar. A mão dele e a dela apoiaram-se no mesmo braço das poltronas contíguas — um toque breve, mas suficiente para se perceberem humanos e atraentes.

Helena sorriu, mas desviou o olhar pela janela, tentando disfarçar o coração acelerado.

Ele observou o reflexo dela no vidro, o contorno delicado do rosto, o cabelo preso num coque elegante, o corpo e as curvas contidas sob um tailleur lindo. Havia nela um quê irresistível, atraente… e uma distância que o desafiava.

Quando o avião pousou em Paris, ela recolheu suas coisas rapidamente.

— Boa sorte com o descanso — disse, antes de se afastar.

— Boa sorte em merecer o seu — respondeu ele, sorrindo.

E por um instante, ela sentiu vontade de olhar pra trás. Mas não olhou.

O amor, pensou Helena, era para os distraídos.

Ela só não sabia que o destino, ali mesmo, acabava de anotar o nome dela.

Paris amanhecia coberta por uma névoa leve, o tipo de manhã que faz o tempo parecer suspenso.

Helena caminhava apressada pelas ruas de Saint-Germain, salto alto, olhar decidido, uma pasta de couro sob o braço.

Tinha uma reunião com investidores franceses, o tipo de encontro que poderia abrir novas portas para seu escritório. Ela não tinha tempo a perder, especialmente com lembranças de um estranho do avião que, por algum motivo, ainda insistiam em aparecer de vez em quando.

A poucos quarteirões dali, Daniel tomava café em uma charmosa brasserie próxima ao Sena.

De boné e casaco simples, passava despercebido entre os parisienses apressados.

Gostava disso: ser só mais um. O garçom o conhecia apenas como Monsieur Dani, o homem tranquilo que sempre pedia o mesmo café e escrevia em um caderno de capa preta, onde guardava ideias e receitas.

Ninguém ali imaginava que aquele homem discreto era o dono da rede que inspirava metade dos cardápios da cidade.

O destino, que raramente dorme, resolveu agir outra vez.

Helena entrou no mesmo café, buscando abrigo da garoa fina. Pediu um cappuccino em francês fluente e se sentou próxima à janela. Quando ergueu o olhar, seus olhos cruzaram com os dele.

Por um segundo, o mundo pareceu parar.

— Olá, você! Você de novo… — ela murmurou, entre surpresa e descrença.

— Eu estava começando a achar que o destino tinha desistido de mim. — respondeu Daniel, sorrindo com aquele mesmo olhar calmo, mas agora um pouco mais confiante.

Helena deu uma risada breve, mas não negou que seu coração acelerou, mas disfarçou.

— Paris é pequena, então?

— Não. — ele respondeu, inclinando-se levemente. — Mas quando algo vale a pena, o mundo parece diminuir pra caber num café.

Ela tentou não demonstrar o efeito que aquela frase teve. Havia algo nele, uma naturalidade encantadora, quase perigosa.

— E o que você faz por aqui, Daniel-do-avião?

— Trabalho com gastronomia. Vim acompanhar um projeto. — respondeu, omitindo o tamanho real do “projeto”.

— Interessante. — ela comentou, tomando um gole do cappuccino. — Eu lido com contratos, não com temperos.

— Então talvez a gente combine — ele sorriu. — Eu faço o prato e você garante que ninguém o estrague.

Ela riu, rendida por um instante. O charme dele era discreto, sem esforço, e a voz grave parecia se misturar ao som distante das conversas em francês. Havia algo reconfortante naquele encontro improvável, como se o acaso tivesse um propósito escondido.

Antes que ela se levantasse, ele perguntou:

— Posso te convidar pra jantar?

Helena hesitou.

— Eu não costumo sair com homens que encontro duas vezes por coincidência.

— Então deixa eu transformar a terceira vez em escolha. — disse ele, com um meio sorriso.

Ela ficou em silêncio, observando-o por um instante. O jeito como ele a olhava, firme, mas respeitoso, fazia seu corpo responder antes mesmo que a razão interferisse.

— Veremos. — respondeu, levantando-se. — Se o destino quiser…

Ele ficou ali, olhando-a sair, enquanto o vapor do café subia entre eles.

Daniel sentiu algo que não sentia há anos — uma urgência, uma faísca viva.

E, pela primeira vez em muito tempo, teve certeza de que precisava encontrá-la de novo.

Dois dias se passaram desde o encontro no café. Helena acreditava que aquilo tinha acabado ali; uma coincidência curiosa e nada mais. Mas, naquela noite, ao chegar em seu hotel, o recepcionista a chamou.

Mademoiselle Helena? Há uma entrega para a senhorita.

Era uma pequena caixa preta. Dentro, um bilhete escrito à mão:

“Não acredito em sorte. Acredito em segundas chances.

Jantar amanhã, 20h, no Le Verre Clair.

Daniel.”

Helena sorriu sozinha, encostando o bilhete no peito. Tinha algo antiquado e corajoso naquele gesto — o tipo de atitude que ninguém mais tinha tempo de ter.

— Insolente… — murmurou, rindo. — Mas interessante.

Na noite seguinte, ela chegou ao restaurante. O lugar era elegante, mas não pretensioso: luzes baixas, música francesa ao fundo, taças que refletiam o brilho das velas.

Daniel estava à mesa, trajando um terno escuro perfeitamente ajustado. O olhar dele a encontrou no mesmo instante, intenso, como se o mundo inteiro tivesse se silenciado para vê-la entrar.

Helena sentiu o coração bater forte. O vestido vinho moldava seu corpo, sem exagero, e o cabelo solto caía sobre os ombros como um convite sutil.

— Achei que você não viesse. — ele disse, levantando-se.

— Achei que você fosse só charme de aeroporto. — respondeu, sorrindo. — Parece que subestimei.

Ele se inclinou, beijando a mão dela de forma antiga, quase teatral.

— Eu gosto de provar que valho o risco.

Durante o jantar, a conversa fluiu como vinho bom. Falavam de tudo: viagens, sonhos, erros e cada sorriso dela parecia desmontar um pedaço das defesas que ele carregava.

Helena, por sua vez, começou a perceber que havia muito mais por trás daquele homem discreto. Ele falava de comida como quem fala de sentimentos: com paixão e respeito.

— Você fala de cozinha como se fosse poesia. — ela comentou, curiosa.

— É que é poesia. Só que a gente saboreia em vez de ler. — respondeu ele, com um sorriso quase melancólico.

No fim do jantar, o garçom trouxe uma sobremesa sem que ninguém tivesse pedido: soufflé de chocolate com flor de sal.

— Esse é o prato da casa. — disse o garçom. — Criação do senhor Daniel.

Helena ergueu os olhos, surpresa.

— Criação sua?

Ele respirou fundo, quase envergonhado.

— Sim. É um dos pratos que lançou meu primeiro restaurante.

Por um instante, ela o olhou como se o enxergasse pela primeira vez.

— Então você é… o Daniel Moreau? — perguntou, juntando as peças. — O dono da rede Maison Moreau?

Ele assentiu, com um meio sorriso.

— Eu prefiro só Daniel. O resto… complica a vida.

Helena recostou-se na cadeira, olhando fixo para ele.

— Então o homem que queria anonimato convida uma advogada para jantar em seu próprio restaurante? — provocou.

— Eu queria te ver de novo. Não achei que precisava de desculpa melhor. — respondeu, inclinando-se para ela e olhando-a com um calor que fez o ar entre os dois mudar de densidade.

Ela ficou em silêncio por um momento, sem saber o que fazer e sentindo o peso daquele olhar. Mas, em seguida, para retomar o controle, com um sorriso comentou:

— Você é perigoso, Daniel. — sussurrou bem perto dele.

— Só se você quiser que eu seja.

O tom dele era baixo, grave, quase um toque. Ela quase sentia seu calor.

Helena desviou o olhar, sorrindo.

— Boa noite, senhor dos restaurantes. — disse, levantando-se. — Eu ainda não decidi se gosto de você.

— Eu espero o tempo que for preciso pra te convencer. — respondeu ele.

Ele a segue com o olhar até ela desaparecer pela porta e ela sente o olhar dele a seguindo.

Quando ela saiu, o vento frio da noite parisiense bateu contra o rosto, mas o calor do olhar dele permaneceu como uma marca.

E, pela primeira vez, Helena teve medo. Não teve medo de se envolver, mas de não conseguir evitar.

Paris parecia outra quando ela se percebe apaixonada.

As luzes, as ruas molhadas de chuva, até o som dos passos nas calçadas. Helena não queria admitir, mas Daniel estava em todos os seus pensamentos. No meio de reuniões, entre telefonemas e contratos, ele surgia como uma lembrança quente, envolvente e persistente. Essas lembranças sempre a dispersavam do trabalho.

Nos dias seguintes, ele não a pressionou. Apenas enviava mensagens curtas: “Bom dia, advogada ocupada.” ou “Você já almoçou, ou continua salvando o mundo dos contratos?”

Ela respondia, sempre seca, mas com um sorriso escondido no rosto.

Um sábado, ele insistiu em buscá-la.

— Só uma tarde. Sem compromissos, sem títulos. — disse ao telefone. — Eu prometo não falar de comida se você prometer não falar de trabalho.

Ela hesitou… e aceitou.

Daniel a levou para um mercado ao ar livre em Montmartre, onde o cheiro de frutas frescas e flores misturava-se com risadas e músicas de rua. Ele caminhava ao lado dela como se o tempo não importasse.

— Não achei que você fosse um homem de feiras. — disse ela, divertida.

— É onde a cidade respira de verdade. — respondeu. — E é o melhor lugar pra observar as pessoas.

— Você me observa, Daniel?

Ele parou, virou-se para ela, a olhou percorrendo todos os traços de seu rosto, depois voltando aos olhos.

— Desde o avião.

Ela se virou rapidamente para frente, com medo do que poderia demonstrar, mas reconheceu que há muito, não sentia aquela emoção e se embaraçava assim com alguém.

O silêncio entre os dois ficou denso, quase palpável.

Ela desviou o olhar, mas a voz dele parecia tocar nela sem precisar de contato.

Mais tarde, quando o sol começava a descer sobre os telhados de Paris, eles pararam diante de uma vista da cidade. Ele tirou o casaco e colocou sobre os ombros dela.

— Sempre protegendo os outros, mas nunca a si mesma. — disse, baixinho.

Helena sorriu, olhando o horizonte.

— E você, o homem invisível que todo mundo conhece sem saber quem é. Deve ser cansativo.

— É. — ele confessou. — Eu construí tudo o que sonhei, mas às vezes sinto que perdi o direito de ser só eu.

Ela o encarou e, pela primeira vez, viu o homem por trás do nome, o olhar cansado, verdadeiro.

O coração dela, acostumado a resistir, falhou por um segundo.

Daniel deu um passo à frente, bem devagar, deixando espaço para a escolha dela. Quando ela não recuou, ele a segurou trazendo-a para junto de si. O toque foi suave, mas o calor subiu de imediato, o corpo dela reagindo antes da mente.

Os lábios se encontraram num beijo que misturava desejo e ansiedade, um beijo que começou terno e terminou com respiração entrecortada.

Helena se afastou um pouco, ofegante.

— Eu não devia me envolver. Tenho uma proposta em Londres. É a chance que esperei por anos.

Daniel a olhou, sério.

— E se você for, eu espero. Mas não finja que isso aqui não é real.

Ela passou a mão pelo rosto dele, sentindo a barba com fios castanhos e vermelhos e o calor da pele.

— Você é… complicado demais pro meu mundo.

— Ou talvez seu mundo precise de algo complicado para te lembrar que você ainda sente. — respondeu ele, tocando o rosto dela com ternura.

Por um instante, nada mais existia; só o som distante dos sinos, o vento, o cheiro de Paris e dois corações tentando entender o que o destino queria deles.

Mas a razão de Helena era dura de dobrar.

Naquela noite, sozinha no quarto, olhou a mala semiaberta com passagens para Londres sobre a mesa. E percebeu que, pela primeira vez, o futuro que sempre quis não parecia tão claro assim.

O céu sobre Paris estava cinzento naquela manhã. Um vento frio soprava pelas ruas, como se a própria cidade pressentisse uma despedida. Helena desceu as escadas do hotel com a mala na mão e o coração pesado. O voo para Londres sairia em poucas horas.

Ela tinha repetido mil vezes para si mesma que era o certo, que carreira vinha antes de qualquer emoção passageira. Mas, ao passar pelo café onde o conheceu, sentiu um nó no peito. Ainda podia ouvir a voz dele, calma, convidativa, envolvendo-a em emoções há muito esquecidas, agora ali presentes.

Do outro lado da cidade, Daniel estava sentado no escritório de um de seus restaurantes. A mesa estava coberta de contratos, mas os papéis pareciam borrados.

Desde o último beijo, nada fazia sentido. Ele tentava respeitar o espaço dela, mas a ideia de deixá-la partir sem lutar o consumia.

Pegou o celular.

Digitou uma mensagem. Apagou.

Pegou o casaco e simplesmente saiu.

No aeroporto, o som dos alto-falantes e das malas rolando pelo chão criava uma sinfonia mecânica. Helena olhava a pista pela janela, tentando conter a ansiedade. O telefone vibrou, uma mensagem de Daniel.

“Se eu disser que o jantar daquela noite mudou tudo pra mim,

você acreditaria?”

Ela respirou fundo, sem responder. O coração, que sempre obedeceu à razão, agora batia em desordem.

Mais uma mensagem:

“Não quero te impedir de ir. Só quero te ver antes que vá.”

Helena fechou os olhos. Não devia. Mas algo dentro dela, aquela parte que lutou tanto pra se manter firme, já não queria lutar.

Correu pelos corredores, o salto ecoando no piso liso. Os seguranças a olhavam atravessando as portas com pressa, o cabelo solto, a respiração curta.

E então o viu.

Parado perto da saída principal, com o mesmo casaco escuro, o olhar intenso e o sorriso que misturava nervosismo e esperança.

— Você é louco. — disse ela, rindo sem fôlego. — Eu estava prestes a embarcar.

— Então ainda não embarcou. — respondeu ele, dando um passo à frente. — Helena… eu passei anos fingindo que tudo o que construí me bastava. E então você apareceu, e eu percebi o quanto me faltava.

Ela tentou responder, mas ele continuou:

— Eu sei que seu trabalho importa. Eu sei que Londres é um sonho. Mas eu não vou me perdoar se te deixar ir sem dizer o que sinto.

O silêncio entre eles parecia o mundo inteiro parando.

Helena o olhou por um longo instante, os olhos encantados.

— Você me tirou do meu eixo, Daniel. Eu odeio isso. — disse, com um sorriso trêmulo. — Mas talvez seja exatamente o que eu precisava.

Ele se aproximou devagar, até que o ar entre os dois ficou intenso, denso, inevitável.

— Então fica. — sussurrou. — Fica e me deixa te provar que o amor também pode ser um acerto.

Ela respirou fundo. O som do embarque ecoou atrás, chamando o voo dela.
Mas ela não se moveu.

— Eu sempre cumpro meus contratos, Daniel. — disse, baixinho. — Mas talvez esse seja o primeiro que eu queira quebrar.

O beijo veio antes de qualquer palavra. Um beijo longo, envolvente, carregado de tudo o que haviam reprimido: a paixão, o medo, a entrega.

Do lado de fora do aeroporto, chovia novamente em Paris, como se lavasse o passado de ambos.

Ela deixou a mala cair ao chão, os braços em volta do pescoço dele, e, pela primeira vez, não pensou em prazos, nem em riscos.

Só no presente.

E quando o alto-falante anunciou o fechamento do portão, Helena sorriu entre o beijo e o sussurro dele:

— Bem-vinda à sua nova cidade.

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